segunda-feira, 7 de março de 2011

O preço da dignidade

Um dos primeiros clientes da pequena agência que montei com uma amiga, a Mutirão de Profissionais de Propaganda, foi a Ática a maior editora de livros didáticos do país, para quem fizemos anúncios memoráveis. Foi uma relação de muito respeito, amor e confiança, mas como no aspecto comercial não há amor que dure sempre, a editora foi vendida e então, o célebre “agora sob nova direção” parou tudo. Nunca mais se viu um anúncio com a sua marca.
Em compensação, nossa experiência com esse tipo de cliente fez com que outra editora, sabendo que já não estávamos com a grande concorrente, nos procurasse para entregar sua conta. Foi uma negociação dificílima: havia um diretor que não conversava em outros termos que não fossem: finanças, custos, descontos etc., etc. Era reunião pra lá, reunião pra cá e nada se definia, porque o homem achava que não deviam pagar criação e com muito favor, aceitariam trabalhar conosco se baixássemos nossos honorários de veiculação em 50%, ou mais. É claro que não topamos, e nem toparíamos: pela falta de ética, pela falta de vergonha, por respeito ao nosso ofício e finalmente, porque foram eles que “encostaram o umbigo em nosso balcão” e não nós no deles.
Acho que pelo fato de nos terem procurado, somente por isso, o homem resolveu aceitar nossas condições e nos encaminhou para o setor de vendas que também respondia pela propaganda, e como primeiro trabalho, nos passaram uma urgente lição de casa: um anúncio em homenagem aos escritores no "Dia do Escritor". Um briefing simples e lacônico: “é preciso valorizar o Escritor, porque é daí que vem o nosso ganha pão”. Nós completamos com educação, cultura e saber.
Criamos um ótimo anúncio (modéstia à parte), cujo título era um trecho do poema "O livro e a América” de Castro Alves:

“Oh bendito o que semeia livros, livros a mancheias e manda o povo pensar..."

Brilhante ideia, porque semear livros a mancheias e fazer o povo pensar, além de ser um dever de cada um é o verdadeiro papel do escritor, dos livreiros e das editoras... Conscientes disso e com toda aquela empolgação de agência nova, fomos apresentar o trabalho para o pessoal de vendas. Eles vibraram com a peça, mas tiveram que chamar um diretor para ajudá-los a tomar a decisão e não deu outra. Quem veio? Aquele diretor que queria cortar nossos honorários. Era o homem do dinheiro e também da palavra final.
O que não sabíamos era que ali estava um racista daqueles de filme da Ku Klux Kan, antissemita e defensor intransigente do III Reich, do Santo Ofício, do Apartheid, anticomunista até a medula, era quem diria se a empresa faria ou não o anúncio. Após nossa reapresentação, durante a qual ele não moveu um único músculo da dura face, puxou o texto de minha mão, dando uma lida bem superficial e, com uma expressão iradíssima e a voz rouca de ódio, sentenciou: “esse poeta de merda, proxeneta e comunista, dava o rabo para os negros e corria atrás das negras, por isso os defendia com tanta convicção...". E mais: "Nossa empresa jamais assinará um anúncio como este, enquanto eu for vivo e diretor dela. Façam coisa melhor, se quiserem nossa conta".
Nossa frustração foi grande. Só não foi maior, porque aproveitamos a oportunidade e descendo ao seu nível, mandamos que enfiasse sua editora no rabo, e nos despedimos em quase ritmo de Castro Alves:

“vossa senhoria, que com sua miopia,
fala sobre o que não leu, fala sobre o que não viu,
pois que poeta safado
proxeneta e comunista é a puta que o pariu...”

Vale lembrar que o homem era mulato claro, beirando a branco e quisesse ele ou não, um ilegítimo descendente do povo negro a quem o grande poeta dedicou seu verbo, sua verve e sua vida.

Perdemos o cliente, mas mantivemos a dignidade.

Publicado no site UMA COISA E OUTRA (http://www.umacoisaeoutra.com.br) e noutros sites culturais

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